segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Enquanto tu gritas, ar.


 De uma forma diferente começou. De formas diferentes aconteceu. E agora tanto faz a forma, como tudo começa, como tudo acaba.
 Era como se eu estivesse voando. Vento forte sempre me traz liberdade. Acho que é assim com a maioria das pessoas. O mar estava bastante agitado e a areia quase me encobria naquele beco em que eu estava sentada. Mãos atando pernas enquanto o vento sacudia meu cabelo. O crepúsculo aumentava com os segundos, bem ali em minha frente, fazendo com meus fios loiros cintilassem em gritos.
 E gritos cintilavam de qualquer canto do meu corpo. Era totalmente impressionante e eu ainda não conseguia acreditar em tudo que havia acontecido. Bem ali, naquele mesmo lugar. Eu fechava os olhos, e enquanto um vento gritava em minha face, tudo voltava a acontecer em minha mente.
 Já havíamos vistos semanas consecutivas, naquela mesma praia. Os dois sempre ali, naquele mesmo lugar.  Não nos conhecíamos, e eu nunca via de onde ele surgia. Mas a cada noite, sempre no mesmo lugar e no mesmo horário, eu já esperava que ele aparecesse ali. Ele sentava-se ao meu lado e nunca tínhamos nos falado. Não necessitávamos de palavras. Uma simples troca de olhares e o resto da noite com os olhos fixados no pôr-do-sol. Ele tomou conta de minha vida, rapidamente, sem que eu notasse.
 Que diabos, nem conhecia aquele homem, e mesmo assim, me sentia obrigada a vê-lo todas as noites. Bem queria eu que fossem noites de sonhos, pequenos delírios enormes. Mas creio que tudo tinha que acontecer.
 Tiveram algumas noites em que ele se atrasava. Não sabia seu nome, mas sabia seus horários. Como a vida é irônica. E eu me sentia perdida ali, sem sua presença. Mas ele sempre aparecia. Ele sempre surgia do nada. Como um pássaro que persegue o ar, sem necessitar saber qual seu destino. E seu destino era, tão e simplesmente, eu.
 Lembro-me bem da primeira vez em que nos falamos. Eu havia brigado com meu pai e saído de casa. Naquela noite, naquele mesmo lugar, uma pequena trouxa de roupas me acompanhava.
 Quando ele se sentou ao meu lado, aquela noite, não teve troca de olhar. Foi apenas um olhar solitário -o dele- sobre mim. Lágrimas silenciosas escorriam pela minha face quando ele me abraçou e um ar forte soprou sobre nós. Eu senti uma dor aguda no peito, como se algo me dissesse que ali estava tudo que eu precisaria.
 E eu realmente me senti completa. Não necessitávamos de explicações. Nunca precisamos deixar nada muito claro. Era tudo subentendido e eu gostava disso. Gostava da forma como ele era excessivamente envolvente. Era totalmente diferente de qualquer outra relação. Eu lhe contei tudo que havia acontecido comigo nas horas passadas. Ele me aconselhava de uma forma tão intensa, que por momentos senti como se ele fosse meu pai. E realmente, eu o estava vendo como muito mais aconchegante do que meu pai biológico. Ele foi, daquele dia em diante, meu maior porto-seguro. E então, sem me dar conta, em uma noite, ele já conhecia minha vida inteira. Minha vida até aquele dia, pelo menos.
 Eu tinha um apartamento que nunca havia usado. Ganhei de um tio, para estudos. Foi para lá que eu fui no fim daquela noite extremamente fria. E mesmo tendo ficado longe da praia, nunca deixei de ir lá. Ainda vou, toda noite, no mesmo horário. Dizem que a mágoa faz mal para quem sente, mas para mim foi diferente. Tudo sempre diferente. E a mágoa, o enorme ressentimento fez com que eu nunca mais procurasse minha família. Não os sentia mais como parte de mim. Com o pouco que eu ganhava no escritório de minha amiga advogada, conseguia manter meu pequeno apartamento, e vivia muito melhor sozinha.
 Mesmo sem nunca termos dito nada disso, nós sabíamos que agora ele era minha única família. Não, não nos envolvemos em nenhum outro lugar, a não ser ali, naquela praia, naquelas noites, sempre no mesmo horário. Nunca nos encontramos fora dali. Nos encontrávamos apenas nos luares daquela praia e a linha que nos unia, fortalecia a cada dia. Ninguém nunca vai me amar melhor que ele.
 Éramos amantes fiéis. Pequenos namorados, e nunca precisamos dizer isso um para o outro. Simplesmente éramos e nós sabíamos disso. Mais de um ano se passou, e sempre estávamos naquela mesma rotina, todas as noites. Mas a rotina tinha sempre sabor de aventura. Cada nova noite, era um novo olhar, um novo abraço, um novo beijo. Era diferente a forma em que agíamos, todas as noites.
 Era uma noite de novembro, excessivamente quente. O ar soprava forte, e o mar estava totalmente agitado. Para ser mais precisa, era 27 de novembro, e eu tinha exatos 27 anos. Eu entendo isso como uma coincidência pré-destinada. Pode-se entender como bem quiser. Eu estava frágil. Passei meu dia todo esperando pelo fim de tarde. Ele chegou com um sorriso bonito. O mesmo sorriso encantador que só nele pode existir. Aquele beijo durou mais, durou a eternidade. Ele me envolvia em seus braços da forma mais acalentadora possível, e andávamos juntos, de mãos e bocas entrelaçadas, pela grande pedra em que sempre ficávamos. Nossos corpos uniam-se de forma tão fácil, que se tornava imperceptível a rapidez da aproximação. As pessoas costumam querer diferenciar o necessitar do querer, mas eu não vejo nenhuma diferença entre os dois. São dois em um, necessitar e querer de forma viciante e desesperadora. Era assim que sentíamos. Ambos, nós sabíamos.
 Nós sabíamos e sentíamos juntos, tudo que acontecia. O ar batia forte ali em cima, e o mar gritava amores lá embaixo. Nossa respiração se tornava, a cada segundo, mais ofegante. Não tínhamos tempo para perceber o que estávamos fazendo, muito menos como estava sendo feito. Há certas coisas que mesmo achando que está errado, não há mais tempo para voltar. Não tínhamos tempo para nenhum regresso, necessitávamos um do outro. Ali, naquelas pedras, naquele pôr-do-sol, naquele oceano, naquela dimensão, naquele deserto, somente mim e ele. Sem ter qualquer noção de tempo, todas as peças de nossas roupas já estavam esparramadas, quando nos lembramos de abrir os olhos, por alguns momentos.
 Mas já tornaram-se a fechar, porque necessitávamos disso, de estarmos interligados somente pelo toque. Ah, e seu toque era maravilhoso. Nossos corpos se uniam com força, com desespero, com atraso. Suas mãos eram ligeiras e percorria todo meu corpo, com cada detalhe e muita rapidez. Creio que durou horas, enquanto eu senti que foram segundos. Aquela rapidez fazia com que eu me sentisse em um delírio. E que delírio! Sua boca fazia com que eu sentisse meu corpo formigando. E ardia, ardia estar com ele. Ardia como ele me beijava, e como sua língua percorria todo meu corpo. Ardia como suas mãos apertavam com segurança meu corpo contra o dele. Ardia como seu corpo suado caía sobre o meu. Ardia como ele me penetrava e se tornava parte de mim. Se tornava meu, se eternizava em mim. E ainda arde, e é como se a todo momento eu sentisse ele dentro de mim.
 E não havia forma de nos aliviarmos daquele delírio tão torturante. Me doía a forma como eu precisava dele. E quanto mais ele se tornava meu, mais dele eu queria. Era como um círculo viciante sem fim, sem fim como aquela noite. Ela realmente não teve fim, para nenhum de nós dois.
 A repetição acontecia sem intervalo, sem tempo para pensar. Parecia que sabíamos que aquela noite deveria valer pelo resto de minha vida. Não tinha limite para nossos corpos, nos sentíamos voando junto àquele vento imenso que parecia voar somente para nós. Nossos corpos flutuavam muito levemente, e tudo que eu podia sentir era o seu corpo. O seu corpo no meu, de forma dura e segura.
 Aquela noite jamais acabaria. E realmente, para mim nunca vai acabar. Porque minha mente insiste em realçar cada detalhe de todas as cenas daquela noite. Minha mente grita junto com o ar. Porque enquanto nós gritávamos, num suspiro interminável, para tentar aliviar toda aquela tensão tão forte que a união de nossos corpos proporcionava, o ar gritava conosco. Gritava forte, em um assobio sem fim.
 O pôr-do-sol se substituiu pelo brilho lunar, e agora as estrelas nos vigiavam. Eram nossas cúmplices. Únicas cúmplices de que não era apenas um sonho meu, de que eu não estava delirando. Não de forma literal, pelo menos. Estávamos abraçados, no canto da rocha, sem dizer nada. Apenas sentindo o ar nos cortar e uma liberdade imensa nos fazer sentir as pessoas mais felizes do mundo. E não somente por aquele momento, mas para sempre. Nossos risos eram os mais altos e ecoavam por toda aquela praia. Era bom se sentir independente, se sentir mais forte que o próprio ar, que o próprio mar. Se sentir mais forte do que toda aquela natureza à nossa volta, que nos observava perplexa. E tenho certeza que era exatamente isso que ele sentia, quando se levantou rindo, e rodopiando à minha frente, me puxando em seus braços, me envolvendo. Dois corpos dançando no espaço. Um corpo caindo no espaço.
 Foi exatamente o que eu vi, quando em um último riso cortante, o ar se mostrou invejoso à toda aquela felicidade, e jogou-se sobre ele. Um último rodopio irritante e irresponsável, no canto de uma rocha alta, no alto mar que se agitava cada vez mais. E então caiu. E seu grito ainda me parecia um riso, um riso extremamente irritante. Corri, gritei, bati no vento, olhei. Mas não via mais nada. Assim como tinha começado, do nada, sem nenhuma explicação. Assim tinha acabado. Ele simplesmente havia sumido, simplesmente assim, o mar o encobriu e o abrigou eternamente. E o ar calou minhas lágrimas e meus gritos. Que nada mais faziam sentido. Não tinha mais nada a fazer ou a ser dito. Eu sentava sozinha ali e nada mais adiantaria.
 Mas nunca deixei de voltar ali. Todas as noites, naquela mesma rocha, o ar que grita em minha face, me faz ouvir sua voz me dizendo que está tudo bem. Me dizendo que eternamente vai estar comigo. Eternamente vai arder em mim sua presença. Meu corpo sempre vai arder e formigar enquanto eu estiver sentada naquela rocha, com todas as lembranças acontecendo em frente aos meus olhos.
 E agora, somente alguns meses depois do acontecido, sinto algo se mexer em mim. Coloco minha mão sobre meu ventre e sinto o toque de um pequeno ser crescer dentro de mim. É parte de nós dois, é resultado crescente de minha maior aventura. É a prova mais concreta de que meu delírio foi real. Prova de que o momento se eternizou. E mais, um momento cresceu e se tornou único. Um pequeno serzinho chutando fortemente minha barriga, me dizendo que está feliz por estar comigo. Me dizendo que não sou a única a sentir falta dele. Mas que também não sou a única a sentir sua presença no vento que percorre aquele mar. E naquela rocha, eu sempre vou ouvir seu riso e eu sempre estarei feliz. Um ser cresce em mim, para que eu não esteja sozinha. E essa é minha maior certeza de que ele estava certo. Ele nunca me deixaria sozinha. Ele se fez substituir e estar comigo sempre, continuar em mim. É, eu sei, tudo ficará bem.

Autora: Anna Carla Fabris Ernandes

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